terça-feira, 14 de dezembro de 2010

FICÇÃO E REALIDADE EM “O LIVRO DO DESASSOSSEGO” DE BERNARDO SOARES

Em determinados setores da vida social existem “problemas” que por falta de vontade crítica ou por clara indiferença não são resolvidos. Muitas vezes, com esses problemas sem solução acontecem situações que uma pessoa com o mínimo de sensibilidade e criticismo não deixaria acontecer. Uma dessas situações é deixar que determinadas “partes” desse problema caia no senso comum, ou até mesmo no ostracismo.
Com a arte também acontece o mesmo, vez por outra, a falta de vontade de pesquisa e, muitas vezes, a dificuldade de entendimento da “mensagem” do artista tornam-se obstáculos à resolução daqueles “problemas”. Mais especificamente falando da arte das palavras, a literatura, essa dificuldade é latente com alguns escritores. Sem sair de nosso “sertão” literário, a dificuldade de estudos avalizados sobre alguns escritores brasileiros é visível: como entender o “sertão” de Guimarães Rosa sem cair no clichê de neologista. Ou analisar o “vasto mundo de Drummond sem se referir ao sentimentalismo em suas poesias. Meu discurso estaria sendo falacioso e um tanto hipócrita se não falasse que existem bons trabalhos sobre esses autores, entretanto, a grande maioria ainda se esquiva de um trabalho crítico e termina, enfim, caindo no senso comum da crítica especializada.
O século XX na Literatura nos trouxe uma forma diferente de ler romances ou poemas, ao invés de simples deleite e fruição pessoal, os escritores adicionaram em seus textos interrogações implícitas (ou explícitas), ou seja, o leitor era indagado a pensar sobre o texto, era parte constituinte do projeto de criação, interagir com o autor/autores dos textos.
Seja ela uma arte engajada politicamente, economicamente ou socialmente, ou apenas literariamente (no sentido formalista da palavra) o século passado foi cheio dessas “interrogações” que os escritores lançaram mão em seus textos. Como era de se esperar muitos desses escritores não foram/são compreendidos na transmissão da sua literatura. Um desses exemplos é o escritor português Fernando Pessoa.
A procura de se encontrar em outra pessoa ou em outra coisa, mesmo que seja ele mesmo, a possibilidade de se fragmentar em “outros” e a possibilidade/necessidade de experimentar todas as sensações possíveis ao mesmo tempo contaminavam o pensamento do escritor português. Tanto que ele criou uma forma de tentar representar ou sentir tudo ao mesmo tempo, os heterônimos, ou seja, personalidades literárias com vida, obra e pensamentos próprios (?). Cada um desses heterônimos são estudados incansavelmente nas academias, mas um especial vai nortear o nosso trabalho , por isso nos chama atenção devido a essas características em especial: a) Ele não é propriamente um heterônimo, e sim, um semi-heterônimo. B) Escreveu um livro que por falta de estrutura, ou dificuldade de identificar essa estrutura, permeia os limites teóricos da ficção e da poesia. O semi-heterônimo é Bernardo Soares e a obra é o Livro do Desassossego.
Muitos críticos afirmam que Bernardo Soares seria um reflexo de Fernando Pessoa, eles comprovam isto pelas “coincidências” existentes nas biografias de Pessoa e de Soares, tais como: freqüentavam os mesmos lugares, cafés, bares, a área da Baixa em Lisboa, moravam em pensões baratas, estavam coincidentemente sós, eram avessos as paixões, e a mais intrigante e parecida característica: A incompreensão do mundo.
Bernardo Soares era um ajudante de guarda-livros de Lisboa que tinha um olhar diferenciado para a sociedade, para ele mesmo e para o mundo. Soares, assim como Pessoa, tinha a necessidade incontrolável de experimentar todas as sensações do mundo. Incluído naqueles “problemas” que a arte não consegue decifrar, Bernardo Soares é meio que um heterônimo, ou semi-heterônimo, esquecido pela crítica, ou por sua dificuldade de compreensão ou pelo fato da obra escrita por ele não ter a estrutura peculiar de um romance ou de novela. Partindo do pressuposto que Pessoa escreveu sua obra com a intenção de ser um projeto literário, Bernardo Soares seria a intersecção entre autor e a sua “família” heteronímica, pois, todas as características desta família, tanto psicológicas quanto literárias são passadas por meio da estética encontrada em “O livro do desassossego”.
Essa intenção de englobar tudo em um só heterônimo é analisada por Nelly Novaes desta forma: “A voz/escrita de Bernardo Soares se manifesta como “sujeito em O livro do desassossego e revela/oculta o possível ser real fernandino”.
Além de tentar interseccionar os heterônimos, achamos que com essa afirmação de Nelly Novaes que a verdadeira intenção de Pessoa era ali analisar em um outro, o próprio espaço interior, descobrir-se uno através dos vários, enfim multiplicar-se.
Também incluída naqueles problemas sem solução da Literatura, a obra de Soares tem características peculiares: 1) O livro não foi publicado em vida pelo autor, por mais que suspeitemos de suas intenções, não afirmaremos se o autor mexeria no livro ou não. 2) Como podemos classificar uma obra de livro com uma estrutura que não se enquadra como tal? 3) Se é um livro que denominação deveríamos dar ao livro do desassossego: ficção ou poesia, pois quando nos debruçamos sobre as centenas de páginas do livro percebemos que essa separação fica comprometida.
Dentre essas características a mais importante para nós será a última. Onde se situa o livro do desassossego de Bernardo Soares: no limite da ficção ou da poesia?
Analisando primeiramente o que de poético se sustenta na obra, podemos observar que a re-semantização de vários temas em peculiar, isto é, simplesmente não se descreve fatos. No texto, Soares dá uma visão polissêmica a determinado assunto, olha com outros olhos, se transfigura, individualmente e literariamente em outros. É como se todos os desassossegos do fossem nossos. Na medida em que sua autobiografia sem fatos está sendo contada, percebemos que os fatos não são vividos, mas sentidos, experimentados.
Além dessa re-semantização, no livro do desassossego ocorrem passagens que, analisando a obra de uma forma fragmentada, podemos enxergar tendências das duas últimas escolas literárias existentes: No plano do conteúdo o Simbolismo, e no plano da forma o Modernismo.
As tendências da poesia modernista aparecem no livro na forma da ruptura com estética vigente do passado, através da utilização dos versos livres, sem rimas na grande maioria, ao invés dos sonetos tradicionais do Simbolismo. E as características simbolistas aparecem na forma de conteúdo com a temática decadentista. O pessimismo também é marcante em alguns trechos e a possibilidade de experimentar todas as sensações é visível.
E quais são as características de ficcionalidade existente em “O livro do desassossego”?
Uma das principais é a existência de cenários, tais como: os arquivos onde trabalhava Soares, os cafés que freqüentava, um cenário descritivo como Lisboa. Da mesma forma que analisamos a parte poética de forma fragmentada, temos que decompor as partes ficcionais. Analisando assim alguns trechos percebemos a característica de cena, com começo, meio e fim, descrições, clímax e desfecho, como por exemplo, o suposto encontro de Soares com Pessoa onde se entrega o livro para o início da escrita. Mas o que chama mais atenção para identificar o livro do desassossego como ficcional são duas coisas: A identificação de personagens e a quase “ instituição” de Bernardo Soares como narrador/protagonista de sua próprias experiências .
Mas a pergunta que fica entreaberta é: Teremos mesmo que classificar O livro do desassossego entre essas duas vertentes da Literatura? Fernando Pessoa foi um autor/autores que se multiplicou em vários, entretanto, sendo ele mesmo. O que fica na verdade é a mística e a complexidade, não só do Livro do desassossego, mas da obra completa desse autor genial.
Existem leituras de Pessoa que enxergamos seu lado pagão, outro lado racional, vez por outra um lado desiludido com a instituição do Ser. Se Pessoa mesmo disse que não se considerava um escritor, e sim, uma Literatura inteira, por que não considerar O livro do desassossego uma Literatura inteira? Pois ali podemos encontrar ficção, poesia, prosa, autobiografia (de um ou de outro) enfim, elementos literários de todas as escolas e de todos os gêneros.
Portanto, concluímos que “O livro” é um dos maiores desafios que a teoria e a crítica literárias têm, em contrapartida, se desvendando o mistério ainda assim o prazer de lê-lo não cessará, pois enquanto haver outro ou outros para nos procuráramos nunca cessará o desassossego.

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