terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Albert Memmi eYacine Kateb: da assimilação à evolução

A literatura dos povos do Maghreb tem como uma das principais temáticas a assimilação cultural do povo colonizador, entretanto, essa assimilação não foi, nem é, uma assimilação de forma pacífica.
Vários escritores tentaram de alguma forma retratar em suas obras a busca de uma real identidade para o seu povo. Escritores como Albert Memmi, Mohamed Dib, Mouloud Feraoun e Mouloud Mammeri tiveram como pano de fundo para suas obras poéticas a aculturação do povo argelino com relação ao povo francês.
Para uma iniciação a essa literatura e a temática da aculturação dos povos do Maghreb é imprescindível que se leia dois livros em especial: “Portrait du colonisé, précédé du portrait du colonisateur.” De Albert Memmi e “Nedjma” de Yacine Kateb. No primeiro livro Memmi faz um retrato quase fiel dos últimos anos de colonização francesa na África do Norte. Sendo ele um colonizado, nascido na Tunísia e de descendência judia, pôde através de suas próprias experiências, analisar profundamente a relação colonial. O livro foi publicado em 1957 pela editora Buchet-Chastel antes mesmo de se concretizar a independência dos três países do Maghreb (a Argélia só conquistou sua independência em 1962) e foi acusado de servir como arma contra a colonização.
A busca de identidade, a valorização do que é seu, enfim, a tentativa de se afirmar como ser humano livre, estandartes levantados não só pelos governos que se sucederam à independência dos três países do Maghreb, mas também pelos seus escritores e intelectuais, só podem ser entendidos através da análise do que foi a colonização que manteve a região sob seu domínio durante mais de cem anos. Este povo, esmagado pelo colonizador que lhe impunha sua cultura e sua língua, sofreu todo um processo de perda de identidade.
O livro foi concebido em duas partes. O autor começa analisando o colonizador
que chega a um país estrangeiro “par les hasards de l’histoire” e descobre de repente ser ele um privilegiado ilegítimo que vem tomar o lugar do nativo e usurpar-lhe os direitos. A partir daí, ele tem duas alternativas: ou se recusa ou se aceita como colonizador. No primeiro caso, sua única solução será a de partir e abandonar esses privilégios, o que se dá raramente pois são muitas as vantagens de que terá que abrir mão. Então, ele decide se assumir como colonizador o que o fará renegar o colonizado e discriminá-lo através do racismo. E, por fim, terminará por adotar aquela atitude paternalista tão característica do dominador.
Na segunda parte do livro temos o retrato do colonizado e o estudo de sua
situação como tal: os problemas da cidadania, da criança, dos valores (tradições e religião), da escola, da língua, da literatura e, enfim, da amnésia cultural. Diante desta realidade, o colonizado passa por duas fases. Primeiramente, ele vai tentar assimilar a cultura do colonizador para ser outra pessoa e para tanto terá que renegar suas origens. Mas, a assimilação se revela impossível porque “pour s’assimiler, il ne suffit pas de donner congé à son groupe, il faut en pénétrer un autre: or, il rencontre le refus du colonisateur”. Ao compreender isso, o colonizado passa à revolta contra aquele ser que ele tanto admirava e surge a segunda fase, a do ódio ao colonizador e,consequentemente, a da busca da afirmação de si mesmo e de sua essência.
Acreditamos, pois, que este livro de Albert Memmi seja primordial para se começar a entender o Maghreb, porque a relação colonial ai analisada funcionará sempre ou como tema principal ou como pano de fundo nas principais obras maghrebinas daquela época.
Compreendido o processo colonizador/colonizado, seria interessante passar a
uma leitura que pudesse dar uma visão geral do que foi a literatura maghrebina de expressão francesa nesse período de 1945 a 1962 através do primeiro contato com seus principais escritores. Recomendamos a Anthologie des Ecrivains Maghrébins d’Expression Française , coletânea de textos organizada por Albert Memmi que se faz acompanhar de notas biográficas dos autores selecionados.
Outro livro de Memmi que se propõe a estudar a problemática da aculturação é
o romance La Statue du Sel de Albert, editado em 1953 por Buchet-Chastel.
Nesta obra o autor retrata sua própria infância e juventude marcadas pelas contradições de três culturas. Nada melhor para definir a temática deste livro do que o prefácio escrito por Albert Camus para a edição de 1966 pela Gallimard: “Voici un écrivain français de Tunisie qui n’est ni français ni tunisien. C’est à peine s’il est juif puisque,dans un sens, il ne voudrait pas l’être. Le curieux sujet du livre (...), c’est justement l’impossibilité d’être quoi que ce soit de précis pour un juif tunisien de culture française.”
O romance tem três partes. Na primeira, são as lembranças dos anos felizes e
sem preocupações de sua infância passada num gueto judeu em Tunis. Na segunda parte, época em que freqüenta o liceu, ele começa a se dar conta de que mesmo sendo o primeiro aluno da classe, sua origem o faz diferente dos outros, seu próprio nome marca esta diferença. E a partir dai, o personagem passa a viver uma fase de busca de identidade, isto é, tenta assimilar a cultura do colonizador, se afastando cada vez mais da sua. Finalmente vem a tomada de consciência da total impossibilidade de assimilação dessa cultura estrangeira, a decepção com o Ocidente e a tentativa de encontrar uma saída para sua vida a partir de uma afirmação de si mesmo.
Este romance foi o ponto de partida de Albert Memmi para a sua pesquisa sobre a sociologia do homem oprimido que levará a publicar em 1957 Le Portrait du colonisé, précédé du portrait du colonisateur e em 1962 Le Portrait d’un juif .Depois de já se ter acumulado algum conhecimento sobre Maghreb, é possível se fazer uma leitura de Yacine Kateb, um dos escritores maghrebinos de expressão francesa mais lidos tanto no Maghreb como no exterior. Além de romancista, Kateb escreveu várias peças de teatro. Sua obra aborda os temas da aculturação, da guerra, mas ele recria os fatos de forma mitológica e poética. Em Nedjma, romance escrito em 1956, há um vai e vem constante entre o realismo, os símbolos e os mitos através dos quais se faz a unidade da obra. A história da personagem Nedjma (que quer dizer “estrela” em árabe) está ligada à da Argélia e é procurando a essência de Nedjma que o autor chega à outra “estrela”, a sua pátria ocupada por estrangeiros. Os principais temas do romance são: as lembranças da infância, a loucura da mãe, a morte, as manifestações de Sétif, a prisão, a personagem de Nedjma e seus símbolos.
A obra de Kateb não é de leitura fácil e exige algum conhecimento sobre o povo magrebino e sua cultura, mas se impõe por ser um tipo de narração inovadora nesse período da literatura maghrebina.
A literatura do Maghreb assim como a grande maioria da literatura dos povos colonizados tenta retratar ou descrever a luta com o colonizador e a afirmação da identidade nacional. Então esses dois escritores relatados aqui além de mostrar as principais temáticas da Literatura magrebina nos fazem analisar um fato importante: A diferença de estilo entre os dois, Memmi com uma escrita quase autobiográfica e Kateb com uma prosa quase poética. E é importante também descobrir esses escritores e essa cultura, pois, eles não estão tão distantes de nós, sul-americanos, o contato com a literatura maghrebina nos possibilitaria estabelecer pontos contrastivos entre essa cultura e a nossa e, analisando as diferenças e as semelhanças, poderíamos chegar a um conhecimento mais profundo de nós mesmos como povo.

FICÇÃO E REALIDADE EM “O LIVRO DO DESASSOSSEGO” DE BERNARDO SOARES

Em determinados setores da vida social existem “problemas” que por falta de vontade crítica ou por clara indiferença não são resolvidos. Muitas vezes, com esses problemas sem solução acontecem situações que uma pessoa com o mínimo de sensibilidade e criticismo não deixaria acontecer. Uma dessas situações é deixar que determinadas “partes” desse problema caia no senso comum, ou até mesmo no ostracismo.
Com a arte também acontece o mesmo, vez por outra, a falta de vontade de pesquisa e, muitas vezes, a dificuldade de entendimento da “mensagem” do artista tornam-se obstáculos à resolução daqueles “problemas”. Mais especificamente falando da arte das palavras, a literatura, essa dificuldade é latente com alguns escritores. Sem sair de nosso “sertão” literário, a dificuldade de estudos avalizados sobre alguns escritores brasileiros é visível: como entender o “sertão” de Guimarães Rosa sem cair no clichê de neologista. Ou analisar o “vasto mundo de Drummond sem se referir ao sentimentalismo em suas poesias. Meu discurso estaria sendo falacioso e um tanto hipócrita se não falasse que existem bons trabalhos sobre esses autores, entretanto, a grande maioria ainda se esquiva de um trabalho crítico e termina, enfim, caindo no senso comum da crítica especializada.
O século XX na Literatura nos trouxe uma forma diferente de ler romances ou poemas, ao invés de simples deleite e fruição pessoal, os escritores adicionaram em seus textos interrogações implícitas (ou explícitas), ou seja, o leitor era indagado a pensar sobre o texto, era parte constituinte do projeto de criação, interagir com o autor/autores dos textos.
Seja ela uma arte engajada politicamente, economicamente ou socialmente, ou apenas literariamente (no sentido formalista da palavra) o século passado foi cheio dessas “interrogações” que os escritores lançaram mão em seus textos. Como era de se esperar muitos desses escritores não foram/são compreendidos na transmissão da sua literatura. Um desses exemplos é o escritor português Fernando Pessoa.
A procura de se encontrar em outra pessoa ou em outra coisa, mesmo que seja ele mesmo, a possibilidade de se fragmentar em “outros” e a possibilidade/necessidade de experimentar todas as sensações possíveis ao mesmo tempo contaminavam o pensamento do escritor português. Tanto que ele criou uma forma de tentar representar ou sentir tudo ao mesmo tempo, os heterônimos, ou seja, personalidades literárias com vida, obra e pensamentos próprios (?). Cada um desses heterônimos são estudados incansavelmente nas academias, mas um especial vai nortear o nosso trabalho , por isso nos chama atenção devido a essas características em especial: a) Ele não é propriamente um heterônimo, e sim, um semi-heterônimo. B) Escreveu um livro que por falta de estrutura, ou dificuldade de identificar essa estrutura, permeia os limites teóricos da ficção e da poesia. O semi-heterônimo é Bernardo Soares e a obra é o Livro do Desassossego.
Muitos críticos afirmam que Bernardo Soares seria um reflexo de Fernando Pessoa, eles comprovam isto pelas “coincidências” existentes nas biografias de Pessoa e de Soares, tais como: freqüentavam os mesmos lugares, cafés, bares, a área da Baixa em Lisboa, moravam em pensões baratas, estavam coincidentemente sós, eram avessos as paixões, e a mais intrigante e parecida característica: A incompreensão do mundo.
Bernardo Soares era um ajudante de guarda-livros de Lisboa que tinha um olhar diferenciado para a sociedade, para ele mesmo e para o mundo. Soares, assim como Pessoa, tinha a necessidade incontrolável de experimentar todas as sensações do mundo. Incluído naqueles “problemas” que a arte não consegue decifrar, Bernardo Soares é meio que um heterônimo, ou semi-heterônimo, esquecido pela crítica, ou por sua dificuldade de compreensão ou pelo fato da obra escrita por ele não ter a estrutura peculiar de um romance ou de novela. Partindo do pressuposto que Pessoa escreveu sua obra com a intenção de ser um projeto literário, Bernardo Soares seria a intersecção entre autor e a sua “família” heteronímica, pois, todas as características desta família, tanto psicológicas quanto literárias são passadas por meio da estética encontrada em “O livro do desassossego”.
Essa intenção de englobar tudo em um só heterônimo é analisada por Nelly Novaes desta forma: “A voz/escrita de Bernardo Soares se manifesta como “sujeito em O livro do desassossego e revela/oculta o possível ser real fernandino”.
Além de tentar interseccionar os heterônimos, achamos que com essa afirmação de Nelly Novaes que a verdadeira intenção de Pessoa era ali analisar em um outro, o próprio espaço interior, descobrir-se uno através dos vários, enfim multiplicar-se.
Também incluída naqueles problemas sem solução da Literatura, a obra de Soares tem características peculiares: 1) O livro não foi publicado em vida pelo autor, por mais que suspeitemos de suas intenções, não afirmaremos se o autor mexeria no livro ou não. 2) Como podemos classificar uma obra de livro com uma estrutura que não se enquadra como tal? 3) Se é um livro que denominação deveríamos dar ao livro do desassossego: ficção ou poesia, pois quando nos debruçamos sobre as centenas de páginas do livro percebemos que essa separação fica comprometida.
Dentre essas características a mais importante para nós será a última. Onde se situa o livro do desassossego de Bernardo Soares: no limite da ficção ou da poesia?
Analisando primeiramente o que de poético se sustenta na obra, podemos observar que a re-semantização de vários temas em peculiar, isto é, simplesmente não se descreve fatos. No texto, Soares dá uma visão polissêmica a determinado assunto, olha com outros olhos, se transfigura, individualmente e literariamente em outros. É como se todos os desassossegos do fossem nossos. Na medida em que sua autobiografia sem fatos está sendo contada, percebemos que os fatos não são vividos, mas sentidos, experimentados.
Além dessa re-semantização, no livro do desassossego ocorrem passagens que, analisando a obra de uma forma fragmentada, podemos enxergar tendências das duas últimas escolas literárias existentes: No plano do conteúdo o Simbolismo, e no plano da forma o Modernismo.
As tendências da poesia modernista aparecem no livro na forma da ruptura com estética vigente do passado, através da utilização dos versos livres, sem rimas na grande maioria, ao invés dos sonetos tradicionais do Simbolismo. E as características simbolistas aparecem na forma de conteúdo com a temática decadentista. O pessimismo também é marcante em alguns trechos e a possibilidade de experimentar todas as sensações é visível.
E quais são as características de ficcionalidade existente em “O livro do desassossego”?
Uma das principais é a existência de cenários, tais como: os arquivos onde trabalhava Soares, os cafés que freqüentava, um cenário descritivo como Lisboa. Da mesma forma que analisamos a parte poética de forma fragmentada, temos que decompor as partes ficcionais. Analisando assim alguns trechos percebemos a característica de cena, com começo, meio e fim, descrições, clímax e desfecho, como por exemplo, o suposto encontro de Soares com Pessoa onde se entrega o livro para o início da escrita. Mas o que chama mais atenção para identificar o livro do desassossego como ficcional são duas coisas: A identificação de personagens e a quase “ instituição” de Bernardo Soares como narrador/protagonista de sua próprias experiências .
Mas a pergunta que fica entreaberta é: Teremos mesmo que classificar O livro do desassossego entre essas duas vertentes da Literatura? Fernando Pessoa foi um autor/autores que se multiplicou em vários, entretanto, sendo ele mesmo. O que fica na verdade é a mística e a complexidade, não só do Livro do desassossego, mas da obra completa desse autor genial.
Existem leituras de Pessoa que enxergamos seu lado pagão, outro lado racional, vez por outra um lado desiludido com a instituição do Ser. Se Pessoa mesmo disse que não se considerava um escritor, e sim, uma Literatura inteira, por que não considerar O livro do desassossego uma Literatura inteira? Pois ali podemos encontrar ficção, poesia, prosa, autobiografia (de um ou de outro) enfim, elementos literários de todas as escolas e de todos os gêneros.
Portanto, concluímos que “O livro” é um dos maiores desafios que a teoria e a crítica literárias têm, em contrapartida, se desvendando o mistério ainda assim o prazer de lê-lo não cessará, pois enquanto haver outro ou outros para nos procuráramos nunca cessará o desassossego.

A confissão de Lúcio: Um entre-lugar no Simbolismo e Modernismo português

1. Uma breve introdução.


Ao analisar a atividade artística de certo período é incontestável que se devam associar as influências extras literárias na composição de determinadas obras. Na literatura do final do séc. XIX essa afirmação fica comprovada. O clima de negatividade, obscurantismo, e de falta de identificação com o mundo e sua estrutura social era pano de fundo para influenciar artistas que estavam descontentes com essa situação. Portanto, esse clima negativo foi uma influência principal para se formar uma nova estética literária, e no final do século XIX surge o Simbolismo, que em alguns países da Europa fica em evidência até as primeiras décadas do século seguinte.
O Simbolismo espalhou suas raízes pelo mundo a partir da França. Jovens intelectuais descontentes com a sociedade em que viviam injetavam sua visão de mundo e sensações subjetivas nos poemas que compunham. Dentre esses estava Charles Baudelaire, para muitos o iniciador da estética simbolista. “Entre suas características principais essa estética apresentava uma linguagem ‘quase” incompreensível, indecifrável, hermética. O escritor queria através das sensações emitirem suas mensagens, a fim de que, o leitor experimente as mesmas impressões que ele tinha do mundo. A musicalidade e a sinestesia também eram características marcantes do Simbolismo.
Como já dito, a partir da França a estética simbolista foi espalhada pelo mundo. Na Europa um dos países que sofreu forte influência dessa escola literária foi Portugal. A literatura portuguesa nos revelou artistas como Antonio Nobre e Camilo Peçanha.
As influências do Simbolismo marcam a trajetória literária de muitos artistas até a primeira metade do século XX. E um desses artistas portugueses é Mário de Sá-Carneiro. No início de sua obra , mais especificamente em sua poesia, Mário é fortemente influenciado pela estética simbolista, apresentando em suas poesias eixos temáticos que eram considerados essencialmente simbolista , tais como: o decadentismo, o hermetismo e a negatividade. Entretanto, esse artista é um dos mais importantes da literatura do século XX porque marca em Portugal um período de transição; ainda carregado de influências simbolistas, Mário de Sá Carneiro dialoga com a nova estética que estava se formando subseqüentemente: o modernismo. Essa transição que ocorre em Mário de Sá-Carneiro fica clara em um livro em específico: “A confissão de Lúcio”.
Publicado em 1914 “A confissão de Lúcio” é uma obra sugestiva para explorar essa transição da estética simbolista para a modernista em Mário de Sá-Carneiro.

2. “A confissão de Mário”

Mário de Sá-Carneiro foi um poeta que circulou nos meios literários de Portugal e de França. Entre essas idas e vindas foi escrito a obra “A confissão de Lúcio”. O artista era conhecido pelo seu modo intimista e introspectivo de ver o mundo. Os poucos amigos que tinha, dentre eles Fernando Pessoa, sabiam dessas características, inclusive contadas em alguns poemas. Mário possuía um grande incômodo com ele mesmo e com o seu “ estar no mundo” , o artista sempre procurava um porquê de se viver, mesmo que esse porquê fosse em outra pessoa ou nele mesmo.
Quem lê a biografia e a obra “a confissão de Lúcio”, às vezes, pode fazer uma comparação: ao invés de confissão de Lúcio poderia ser a confissão de Mário. Isso acontece porque algumas características narradas na obra aconteceram na vida do autor, tais como: a negatividade perante o mundo, a circulação constante nos meios literários de Portugal e França. Mas as características principais vistas na obra, e que permeiam toda a obra de Sá-Carneiro são: a procura constante de se encontrar no outro e a tendência suicida.
Essa procura constante desse eu/outro fica evidente na tríade principal do livro : Ricardo/ Lúcio/ Marta. O narrador, por vezes, nos “confunde” se os três são ou não a mesma pessoa. Essa busca constante de se refletir em outra pessoa também se caracteriza na vida de Mario. O autor, às vezes nas temáticas de seus poemas não sabia distinguir se quem estava falando era o Mário poeta ou o Sá-Carneiro homem.
Outro elo entre vida e obra do autor é a tendência suicida. Ela aparece com grande importância em “A confissão de Lúcio” e nas poesias de Mário, fato essas contadas várias vezes nas cartas a Fernando Pessoa. Assim como Florbela Espanca, que apareceria na história literária portuguesa mais a frente, a obra de Mário de Sá-Carneiro pode ser considerada, não uma obra autobiográfica, como afirmam muitos estudiosos, mas sim, uma obra auto-reveladora, porque fica evidente sua entrega pessoal nas suas letras, e também as três principais inquietações do autor: “ o estar no mundo, a anormalidade e o suicídio.
3. “A confissão de Lúcio”: estrutura .

Esta obra foi considerada por José Régio como a obra-prima de entre as novelas de Sá Carneiro, onde estão, como já dito, três de suas obsessões dominantes: o suicídio, o anormal até a loucura e o amor quase pervertido.

Nesta obra, ao incitar seus personagens na busca de uma transcendência distorcida, Sá-Carneiro cria uma atmosfera de exacerbado lirismo. Capaz de acrescentar um prazeroso sabor ao narrar o inarrável, mesmo no leitor que possui poucas fibras de sensibilidade ele é capaz de produzir um turbilhão interior próximo ao palpitar acelerado do coração quando em êxtase.

A Confissão de Lúcio, publicada pelo poeta em 1914, um ano antes do aparecimento do primeiro número de Orpheu é uma novela que parece apresentar, através da fragmentação, a existência de questões que ficam sem resposta: repetição de silêncios intervalares, espelhamentos intertextuais como forma de dar consistência a essa outra voz, consciente de que tudo aquilo é material com que se constrói a obra de arte, cuja linguagem é plástica e maleável, criadora de um sentido provisório e impossível de fixar.
A Confissão de Lúcio é obra narrada em primeira pessoa e o personagem-narrador procura sempre demonstrar o contrário da característica da obra, isto é, apresentar os (simples) fatos a fim de obter credibilidade do leitor, que é o “júri”. Ao modo próximo dos simbolistas, o narrador vai captando as relações mais íntimas do âmbito da percepção, levando esse conjunto de sensações a rever o conceito de realidade e aproximá-la do fantástico.

A narrativa começa do fim para o início, e já na primeira página o próprio narrador demonstra claramente a desilusão que tomou conta de sua vida depois dos acontecimentos que vai narrar, a ponto dos dez anos que passara na prisão por um crime que não cometera parecerem-lhe "uma coisa sorridente". É bom lembrarmos que há uma certa ironia que passa por toda a narrativa, e tal ironia provém do próprio narrador. É como se, o tempo todo, ele estivesse analisando o passado sob os olhos do presente, a fim de dar um tom de maior veracidade aos fatos narrados, porém, sua tentativa é malograda, uma vez que a ironia empregada assume apenas um tom de riso profilático e é totalmente posta por terra no final, pois notamos que o narrador nada mais é do que a vítima confessa delas próprias.

As várias funções exercidas pelo narrador Lúcio na história - ele é ao mesmo tempo personagem narrador e receptor de outras obras - indicam a ambigüidade, inerente à linguagem, em que o significante desliza constantemente sob o significado, tornando impossível o estabelecimento de qualquer sentido definitivo. E também que o reverso (ou o complemento?) da criação é a destruição: Lúcio destrói no fogo sua peça Brasas, Ricardo mata Marta, sua criatura, o final da obra da americana coincide com a sua morte.

O estilo da narrativa tem por objetivo deixar o leitor em constante dúvida (o relato é real ou imaginário?). Inicialmente, os autores optaram pelo mesmo estilo: uma confissão. Essa confissão alcançou o objetivo na novela de Sá Carneiro.

Ele intensifica o caráter documental de sua obra: a novela é apresentada ora como confissão de fatos consumados ora como um diário íntimo.

Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de fatos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.

(...) E são apenas fatos que relatarei. Desses fatos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.
(...)

Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade - mesmo quando ela é inverossímil.
Com relação às personagens, dentre as várias existentes, entendemos ser o triângulo amoroso formado por Lúcio, Ricardo e Marta, o cerne fundamental que levará à desilusão do autor/narrador no final da narrativa.

Ricardo - o protagonista dos fatos narrados. Trata-se de um poeta que, antes de ser apresentado a Lúcio, é mencionado por várias personagens. Sua marca principal é a incoerência: seu maior problema é que se sente totalmente estranho à vida normal, ao mesmo tempo em que sente uma irresistível atração por ela.

Lúcio Vaz - narrador-personagem jovem escritor português é a duplicação do eu de Ricardo, ou seja, o seu outro, o grande conflito que marca toda a obra de Sá-Carneiro.

Marta - retratada como uma mulher belíssima, mas todo um mistério a envolve durante toda a parte da narrativa em que aparece. É esposa de Ricardo, porém Lúcio se apaixona por ela. Os dois têm uma relação extraconjugal que, para Lúcio, parece óbvia demais para Ricardo não perceber. Lúcio parece ter certeza de que Ricardo sabe de sua relação, mas acha muitíssimo estranha que este nada faça. Em dado momento, Marta deixa de vir à casa de Lúcio e passa a encontrar-se com Sérgio Warginsky, outro freqüentador da casa de Ricardo, o que deixa Lúcio horrorizado.

Para falar de Marta, é necessário ter em mente esta questão do outro, pois esta é a explicação mais plausível do desenrolar final da narrativa, uma vez que é ela quem acende o estopim das ações que levarão à desilusão em relação à vida do autor/narrador.
Num primeiro momento a história se desenvolve na Paris de 1895. O narrador, Lucio, nos conta do meio artístico e destaca-se nessa narração a figura de Gervásio Vila Nova: escultor, dono de uma conversa envolvente, embora fosse algo “disperso, quebrado, ardido”. Destaca-se ainda, nesse momento, a admiração que vai desenvolver por uma misteriosa americana, mulher rica e linda: “Criatura alta, magra, de um rosto esguio de pele dourada - e uns cabelos fantásticos, de um ruivo incendiado, alucinante.” Por meio dela fica sabendo da chegada de Ricardo Loureiro, poeta cuja obra era muito admirada.

Numa festa promovida por Gervásio, Lúcio é apresentado a Ricardo. Logo da primeira conversa vai se desenvolver uma grande amizade e admiração entre ambos.

A admirada americana ruiva desaparece de cena, Gervásio também encerra aqui sua participação no enredo, uma vez que retorna a Portugal. Enquanto as conversas com os outros tinham um interesse voltado para o intelectual, o conhecimento, as feitas com Ricardo pareciam atingir a alma de Lúcio. Dessa amizade nasce uma relação que pode ser representada como sendo uma projeção de Lúcio sobre o outro, Ricardo. Pressente-se um tom de homossexualidade: “Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.”

Ricardo vai para Lisboa, ficam os amigos separados por um ano, trocam-se cinco cartas durante esse período. Em dezembro de 1897 Ricardo retorna a Paris: “As suas feições haviam-se amenizado, acetinado - feminilizado, eis a verdade.” Lúcio sabia, no entanto, que Ricardo havia se casado. Num jantar Lúcio é apresentado a ela, Marta: “Era uma linda mulher loira, muito loira, alta, escultural (.... Cheguei a ter inveja de meu amigo.”

Os três ficaram amigos inseparáveis. Participavam em reuniões de amigos intelectuais e artistas, e nessas se destacava a figura de Sérgio Warginsky, músico russo, que no entanto, vai criar uma impressão negativa e de quase ódio em Lúcio.

Envolvido com sua produção literária, por vezes, Ricardo deixava Lúcio a sós com Marta. Entre situações às vezes constrangedoras que beiravam o limite da amizade, Lúcio começa a se sentir envolvido pela figura de Marta. Até que, enfim, Marta torna-se amante de Lúcio. Lúcio acaba se apaixonando por Marta, apesar de continuar a amizade com Ricardo. Estranhamente Lúcio atenta para alguns detalhes da fala de Ricardo, como quando o amigo lhe diz que ao se observar ao espelho não mais se via: “Ah! Não calcula o meu espanto... a sensação misteriosa que me varou... Mas quer saber? Na foi uma sensação de pavor, foi uma sensação de orgulho.”

Por outro lado, Marta também parecia a Lúcio como uma mulher irreal: “sim, em verdade, era como se não vivesse quando estava longe de mim.” Nada confirmava sua existência além do perfume penetrante que ficava no leito, precisava não mais provar o amor, mas a existência real dessa misteriosa mulher que tanto se entregava a ele e que traía com intensidade o amigo: “As suas feições escapavam-me como nos fogem as das personagens dos sonhos. E, às vezes, querendo-as recordar por força, as únicas que conseguia suscitar em imagem eram as de Ricardo. Decerto por ser o artista quem vivia mais perto dela.”

Depois de algum tempo, Marta torna-se fugidia, demora-se menos com Lúcio, os encontros tornam mais difíceis. Lúcio começa a desconfiar de Marta e desenvolve um sentimento de ciúme. Nas tardes em que apenas encontra o amigo Ricardo, começa a procurá-la desesperadamente. Uma vez seguindo Marta, descobre que ela fora ao apartamento de Sérgio Warginsky. Por essa época, Lúcio terminara uma peça de teatro e começa a andar pelas ruas, em uma dessas andanças encontra Ricardo, este lhe faz uma estranha afirmação, de que Marta é uma criação de Ricardo: “Compreendemo-nos tanto, que Marta é como se fora a minha própria alma,. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos. Somos nós dois... (...) E ao possuí-la, eu sentia, tinha nela, a amizade que te deveria dedicar.”

Nesta cena alucinante, Ricardo mata Marta, e então Lúcio descobre que um mistério envolvia essa morte: Marta folheava um livro, em pé, ao fundo da casa. Ricardo dá-lhe um tiro à queima roupa:

“E então foi o Mistério... o fantástico Mistério da minha vida...

4. Características simbolistas.

“A confissão de Lúcio” fica no entre-lugar da literatura portuguesa, pois mistura em sua composição estética características simbolistas e modernistas.
No que diz respeito à estética simbolista alguns eixos temáticos dessa escola aparecem com maior nitidez: o decadentismo, o hermetismo e a procura de identificação com o mundo.
O clima de decadentismo aparece logo nos primeiros parágrafos da obra. O narrador falando de uma cadeia pede ao leitor julgar suas atitudes a respeito dos fatos a serem narrados. Mas a incerteza de que ele ( o narrador ) será absolvido ou culpado pouco importa, pois , o eu interior do narrador nos passa uma negatividade falando desse assunto. Para ele não importa a absolvição porque o re/início de sua “liberdade” não haveria mais função de estar no mundo, todas as suas experiências e sensações já foram contadas e vividas, portanto, a falta de ( para quê) viver seria seu norte daí por diante.
Outro ponto essencialmente simbolista é a narrativa de sensações das personagens. Através dos sentidos o narrador re/cria uma realidade ao leitor captando as relações íntimas através das percepções vividas pelos personagens.
Uma dos personagens, o artista Gervásio Vila-Nova, é a representatividade da falta de identificação que Lúcio tinha com o mundo. Altamente fútil e com visões claramente burguesas Gervásio causa um estranhamento em Lúcio, e comparando com os outros amigos que o cercavam, que tinham a mesma atitude, o narrador percebe que esses “amigos” eram espelho da sociedade: com características fúteis e aparentes.
O hermetismo na obra também é destaque. A estrutura narrativa, às vezes, nos faz pensar que o que está sendo narrado é ilusão ou realidade, imaginária ou concreta. Ao final do livro a mensagem que nos passa é um sentido de “não fim” da obra, sensação essa ao invés de ponto final poderia existir uma reticência.
5. Características Modernistas

É importante apresentar as características modernistas em “A confissão de Lúcio” de duas maneiras, a primeira no que diz respeito à estética e a segunda no plano do conteúdo.
Uma das características do Modernismo foi tentar romper com técnicas e estéticas de períodos literários anteriores, mas também falar de assuntos que até então não eram discutidos. No plano do conteúdo em “A confissão de Lúcio” um tema/tabu que foi discutido é a questão do homossexualismo. O autor nos conta um amor entre dois homens ( embora não concretizado ) Ricardo/ Lúcio. Portugal sempre foi uma sociedade conservadora e esse assunto pode causar estranhamento o aparecer numa obra literária, por isso também que Mário de Sá-Carneiro é considerado um autor que transgrediu o esperado e não silenciou a qualquer assunto.
Mário de Sá-Carneiro circulava também pelas vanguardas artísticas que estavam aparecendo no início do século XX. Dentre essas vanguardas o Futurismo, com Marinetti, foi uma das principais influências. Essa tendência tinha como pano de fundo a velocidade em que as transformações sociais vinham acontecendo, e essa velocidade fica clara na estrutura narrativa. Em “A confissão de Lúcio” a velocidade da narração tenta evitar o excesso de descrição de ambientes e de personagens, fato marcante no Romantismo. As sequencias narrativas são excessivamente rápidas. onde passado, presente e futuro saltam aos nossos olhos num piscar.
Essa quebra de linearidade ( começo , meio e fim ) é uma das características mais marcantes na obra. Para nós (pós-modernos) isso pode parecer uma banalidade, pois , entre outras coisas já experimentamos fluxos de consciência, tendências surrealistas e arte concreta, mas para o leitor da época acostumado a uma sequencia narrativa tradicional, o esforço cognitivo deveria ser bem grande para essas idas e vindas ao passado, presente e futuro como ocorre em “A confissão de Lúcio” de Mário de Sá-Carneiro.
Enfim, a obra, como já dito, dialoga no entre - lugar do simbolismo e do modernismo, problematizando questões até então não discutidas na literatura portuguesa, e mostrando estéticas já contadas ( simbolista ) e recém inauguradas ( modernista ) entretanto, o principal objetivo do autor foi mostrar uma característica marcante daquela época, e que é / será vista até os dias de hoje: a fragmentação do ser humano. Naquele tempo nós não cabíamos mais em si mesmo, teríamos que nos procurar em outro/outros, a fim de encontrar características individuais em outras pessoas , ou seja, tentar encontrar nossa “ espelhização” . Entretanto, Mário de Sá Carneiro nos mostra em “ A confissão de Lúcio’ que o caminho não é tão simples de percorrer.